Por que decidi votar no PT pela primeira vez…

Entre a esquerda e a direita, escolherei a vida e a democracia

Gustavo Ioschpe é empresário e economista, é mestre em desenvolvimento econômico pela Universidade Yale (EUA)

Participei das passeatas a favor do impeachment de Dilma Rousseff, revoltei-me com o mensalão e o petrolão e não tenho afinidade ideológica com o partido. Apesar desse histórico, em outubro votarei com tranquilidade em Lula, no primeiro turno. A escolha é fácil. Explico-me: A primeira função de governos é zelar pela vida das pessoas. Na formulação clássica de Thomas Hobbes, a vida em um estado natural, sem organização política, é “pobre, sórdida, brutal e curta”. Nossos líderes devem se esforçar para que não padeçamos de mortes evitáveis ou sofrimentos desnecessários. Além de garantir a nossa integridade física, eles precisam se empenhar pela sobrevivência do corpo político que nos preserva. Bolsonaro vai contra tudo isso. Ele é um entusiasta da morte, da violência. É um destruidor de todas as instituições que importam para o nosso futuro: das nossas florestas às nossas escolas, passando pela nossa cultura e desaguando nos próprios pilares da democracia, que ele continuamente achincalha, como o Judiciário, a imprensa livre e o processo eleitoral (que o elegeu!).

O ex-presidente Lula em ato no Recife (PE) com representantes de movimentos culturais – Ricardo Stuckert/Divulgação

Esse desdém pelo outro, claro durante a sua carreira, foi escancarado durante a pandemia. Nosso presidente fez troça da “gripezinha”, insistiu para que as pessoas tocassem as suas vidas sem máscaras. Quando o tratamento veio, Bolsonaro, que não é Messias, nos deixou para trás no recebimento de vacinas. Teve chance de se redimir na vacinação das crianças; de novo, boicotou o esforço. Nem com os nossos pequenos ele se enternece. Os resultados estão aí: quase 700 mil mortos, o 14º país com mais mortes per capita no mundo, quase quatro vezes maior do que a média mundial.

Poderia me estender na longa lista de crimes e patacoadas perpetrados por Bolsonaro para justificar a decisão de não votar nele, mas é desnecessário. Deveria bastar o descaso com a vida alheia para que qualquer político fosse banido. O que requer explicação são aquelas pessoas que ainda pensam em apoiar esse celerado depois de quatro anos de catástrofes em série. Tenho ouvido três explicações/argumentos.

O primeiro grupo de bolsonaristas se identifica com os seus “valores”. As aspas são merecidas: Bolsonaro não é um bom cristão (você consegue imaginar Jesus ou o papa fazendo arminha com a mão e pedindo para enlutados pararem com o ‘mimimi’?) nem um liberal (é preciso ler livros para defender uma ideologia, e ninguém há de acusar o mito de já ter dado essa fraquejada). Se você acredita que Bolsonaro compartilha os seus valores, ou você está se enganando sobre quem você é, ou está sendo enganado sobre quem ele é.

O segundo grupo é o daqueles com ojeriza à corrupção e que acredita que o governo Bolsonaro é honesto. A aparência de seriedade, porém, é mais fruto da supressão das instituições investigativas do que de uma possível conversão do centrão.

https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2022/07/por-que-decidi-votar-no-pt-pela-primeira-vez.shtml

Projeto dos militares preve manter o poder até 2035

Houve um tempo em que os militares mandavam no País e celebravam seus feitos com a música Eu Te Amo Meu Brasil. O velho hit dos Incríveis soou novamente em uma solenidade em Brasília, executado pela fanfarra do Regimento de Cavalaria de Guardas. Era dia 19 de maio. Os Institutos Villas Bôas, Sagres e Federalista apresentaram o seu Projeto de Nação, O Brasil em 2035 em evento que contou com a presença do vice-presidente Hamilton Mourão.

O vice-presidente Hamilton Mourão esteve presente à solenidade de lançamento do programa.
O vice-presidente Hamilton Mourão esteve presente à solenidade de lançamento do programa. Foto: Adriano Machado/Reuters

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Sob a ideia de “entregar um Brasil melhor aos nossos filhos e netos”, os militares e civis envolvidos no trabalho desenvolveram um documento com 93 páginas. O projeto foi coordenado pelo general Luiz Eduardo Rocha Paiva, ex-presidente do grupo Terrorismo Nunca Mais (Ternuma), a ONG do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra. Rocha Paiva disse que o estudo é “apartidário, aberto e flexível”. Ele traça um cenário no qual se projeta o domínio do bolsonarismo no Brasil até 2035.

O general diz que o estudo está à disposição de todos – Mourão e um representante do governo estiveram na solenidade e receberam um exemplar. “Mesmo que haja mudança de governo. Claro que se for de direita para esquerda, vai jogar fora.” O documento aborda 37 temas estratégicos. Trata de geopolítica, governança nacional, desenvolvimento, ciência, tecnologia, educação, saúde, defesa nacional e segurança. A Amazônia é citada dentro do tema Defesa Nacional, no capítulo Integração da Amazônia no Brasil.

O projeto diz que a Nação está ameaçada pelo “globalismo”. Diz o documento: “O chamado globalismo, movimento internacionalista cujo objetivo é determinar, dirigir e controlar as relações entre as nações e entre os próprios cidadãos, por meio de posições, atitudes, intervenções e imposições de caráter autoritário, porém disfarçados como socialmente corretos e necessários. No centro desse movimento está a elite financeira mundial, ator não estatal constituído por megainvestidores, bancos, conglomerados transnacionais e outros representantes do ultracapitalismo, com extraordinários recursos financeiros e econômicos”.

Para Eduardo Villas Bôas, Mourão, Rocha Paiva e associados, o globalismo tem aliados poderosos no Brasil. Afirma o documento: “O globalismo tem outra face, mais sofisticada, que pode ser caracterizada como ‘o ativismo judicial político-partidário’, onde parcela do Judiciário, do Ministério Público e da Defensoria Pública atuam sob um prisma exclusivamente ideológico, reinterpretando e agredindo o arcabouço legal vigente, a começar pela Constituição brasileira.” A ideologia da extrema direita está em outros trechos do projeto.

O presidente Jair Bolsonaro conversa com o ex-comandante do Exército, general Eduardo Villas Bôas, no dia do Exército (19 de abril), em Brasília.
O presidente Jair Bolsonaro conversa com o ex-comandante do Exército, general Eduardo Villas Bôas, no dia do Exército (19 de abril), em Brasília. Foto: Adriano Machado/Reuters

O documento prevê que a classe média deve pagar mensalidades nas universidades públicas e pelo atendimento no SUS. A cobrança deve começar em 2025. “Além disso, a partir de 2025, o Poder Público passa a cobrar indenizações pelos serviços prestados, exclusivamente das pessoas cuja renda familiar fosse maior do que três salários mínimos.” Mourão e os seus amigos para sempre – outra música da cerimônia – pretendem acabar com a Saúde gratuita e universal num segundo mandato de Bolsonaro.

Na Educação, o grupo demonstra ainda o desejo de limitar o debate acadêmico e a liberdade de cátedra, garantidos pela Constituição, impondo sua visão de mundo a estudantes e professores. O projeto traça o seguinte cenário para 2035: “Os currículos foram ‘desideologizados’ e hoje são constituídos por avançados conteúdos teóricos e práticos, inclusive no campo social, reforçando valores morais, éticos e cívicos e contribuindo para o progressivo surgimento de lideranças positivas e transformadoras”.

Aos militares cabe nos contar o que é “desideologização”. O dono da melhor explicação ganhará um cargo vitalício no futuro Ministério da Verdade. O documento prossegue. Os generais acreditam que as salas de aula estão dominadas por esquerdistas. “Há tempos uma parcela de nossas crianças e adolescentes sofria com a ideologização do sistema educacional, com a doutrinação facciosa efetuada por professores militantes de correntes ideológicas utópicas e radicais, com prejuízo da qualidade do ensino”.

Ou se desconhece o que se passa nas escolas do Brasil ou o que se quer é impor a própria ideologia, controlar a história e a memória nacionais como normalmente fazem os regimes totalitários de direita ou de esquerda. O documento faz esse diagnóstico sobre o ensino superior: “Quanto à Educação Superior, o quadro não era muito diferente. Amplos setores das Instituições de Ensino Superior (IES) — principalmente as públicas — transformaram-se em centros de luta ideológica e de doutrinação político-partidária”.

Ele continua afirmando: “Em sala de aula, pouco era feito no sentido de transmitir os conteúdos, ensinar o aluno a pensar, orientar as pesquisas sobre as diversas correntes de pensamento e elucidar sobre como realizar as melhores análises, buscando as opções de vida mais favoráveis, segundo as crenças e convicções de cada aluno. Tudo era feito para que o aluno fosse obrigado a pensar exatamente como pensava o professor, caso contrário não conseguiria se formar e tampouco seria aceito pelo grupo”.

O general Luiz Eduardo Rocha Paiva, coordenador do Projeto de Nação
O general Luiz Eduardo Rocha Paiva, coordenador do Projeto de Nação Foto: Dida Sampaio/Estadão

Para Mourão e Villas Bôas, tudo estará mudado em 2035. Diz o documento: “No ensino universitário, inclusive no Superior Tecnológico, os debates políticos e ideológicos se tornaram equilibrados, com abertura para diferentes correntes de pensamento”. Como fazer isso sem violar a autonomia universitária, a liberdade de cátedra e a liberdade de pensamento é o que mais uma vez não se esclarece. E quem pedir explicações corre o risco de ser acusado de comunista ou de ofender as Forças Armadas.

Toda vez que confrontados com seus atos, os militares que embarcaram no governo de Jair Bolsonaro reagem se escondendo atrás do biombo das Forças Armadas. Tentam fazer com que o suposto agravo individual se torne ofensa coletiva. E, assim, deixam de prestar contas pelo que fazem como se agissem em nome de seus pares. Sem serem julgados, fazem avançar uma amnésia moral. Hannah Arendt tratou dessa falácia em Responsabilidade e Julgamento com a fórmula hoje clássica: “Quando todos são culpados, ninguém o é”.

É que a culpa é estritamente pessoal ao passo que a responsabilidade não. A primeira refere-se a um ato e não a intenções e potencialidades. Quem diz “somos todos culpados” declara solidariedade aos malfeitores ou pretende ser protegido, apesar de sua falha, por quem se sente responsável pelos atos de seu grupo, família ou Nação. Enfim, quem usa o biombo da instituição ou do governo quer mobilizar a responsabilidade coletiva, que só é afastada quando individualmente deixamos um grupo.

Mas em uma República são as pessoas que são julgadas e respondem por seus atos. Assim, o governo Bolsonaro é também responsável pelo projeto de Villas Bôas e de Rocha Paiva, mas só os seus autores podem ser culpados pelo barulho que o documento causar na campanha eleitoral do presidente. Afinal, será difícil explicar à classe média empobrecida pela inflação que ela terá de arcar com os custos do SUS e da universidade pública quando conseguir ser atendida por um médico ou seu filho obtiver uma vaga após muito estudar.

Hannah Arendt em seu apartamento, em Nova York, em 1972.
Hannah Arendt em seu apartamento, em Nova York, em 1972. Foto: Tyrone Dukes/NYT

Será Mourão que terá de dizer ao mercado financeiro internacional o que significa tomá-lo como inimigo. Ou como pacificar a Nação quando o retrato do Brasil que se pretende criar é o de uma democracia sem alternância de poder, impondo um modelo de desenvolvimento à Amazônia que a trata segundo o conceito de ocupar e integrar, dos anos 1970 – o documento diz que se deve acabar com “restrições da legislação indígena e ambiental, que se conclua serem radicais nas áreas atrativas do agronegócio e da mineração”.

Rocha Paiva pensa que “vontade é poder”. Precisava ler Arendt para saber o quanto a liberdade depende da ação coletiva e não da vontade. Normalmente, só políticos autoritários acreditam na força da vontade. Falar em neutralizar – uma linguagem militar – ideologias para impor a própria, nomeada como “conservadora evolucionista”, faz lembrar a pergunta que o jornalista Rolf Kuntz lançou no Estadão sobre o governo: “Haverá alguma diferença entre seu suposto liberalismo econômico e um efetivo darwinismo social?”

Michel Temer teve o Ponte para o Futuro, o plano que o guiou no governo. Bolsonaro e seus militares têm agora – palavras do antropólogo Piero Leirner – o seu “Ponte para o Passado”. Tudo ao som de Eu Te Amo Meu Brasil.

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Você foi cancelado: o movimento ‘woke’ e sua falta de relativismo moral

Nesta nova consciência social, as ideias que não entram na categoria de aceitáveis são consideradas radicalmente imorais.

No começo da década passada, os jovens progressistas do Ocidente, furiosos pelas consequências da Grande Recessão, se mobilizaram para ocupar as ruas, leram a teoria das desigualdades econômicas de Thomas Piketty com suas 1.000 páginas de extensão e se manifestaram contra o 1% formado pelos mais ricos. Tudo isso caiu no esquecimento. Os jovens progressistas agora são woke, ou seja, têm mais consciência social e estão mais indignados pelas injustiças raciais e de gênero.

Nas universidades, os professores se tornaram precavidos quando abordam temas delicados, especialmente se a aula está sendo transmitida via Zoom. E a nova consciência social não é só coisa de jovens. Os filmes mais recentes de Hollywood têm elencos com uma diversidade cada vez maior e os homens ficam eclipsados pelo protagonismo de mulheres perfeitas. Os jornais mais tradicionais começaram a falar de “supremacismo branco”. A Nike e até a CIA lançam propagandas em que falam do patriarcado e da interseccionalidade.

A palavra woke (acordado, consciente) começou a ser utilizada na luta afro-americana contra o racismo, mas passou também a designar a política progressista em matéria de gênero e em particular sobre os direitos trans. Os horríveis vídeos dos assassinatos de homens negros desarmados por policiais que começaram a circular pelas redes sociais em meados da década de 2010 impulsionaram notavelmente a teoria critica da raça, uma corrente intelectual surgida nos departamentos universitários de direito e sociologia. Nos últimos anos, a direita também começou a usar a palavra, mas com uma conotação irônica e pejorativa: se alguém fala de wokism (em tom pejorativo) não há nenhuma dúvida de que se opõe à política racial e de gênero progressista.

Em muitos aspectos, essa onda woke lembra o politicamente correto dos anos noventa e sua ênfase em controlar a linguagem. Os ativistas atuais tendem a se indignar por qualquer expressão que pareça problemática e controversa a eles, por palavras que, no ambiente atual, não só são consideradas ligeiramente polêmicas, como têm consequências. Ao contrário do que acontece na maioria das correntes da esquerda intelectual, o movimento woke não tem nada de relativista; quando uma pessoa recebe o qualificativo de problemática corre perigo de acabar “cancelada”, desaparecida. Essa nova consciência é um fenômeno maniqueísta: as ideias e os comportamentos que não entram na categoria de aceitáveis são consideradas radicalmente imorais.

Mas o movimento woke também se transformou em uma obsessão à direita, que desfruta se indignando por que algo ou alguém foi “cancelado”. Ser contra o woke permite hoje à imprensa e aos políticos conservadores se unir por uma nova causa, mas a revolta causada por cada caso de cancelamento cultural distrai a direita e a impede de fazer uma reflexão política profunda.

Outro aspecto chamativo do movimento woke é como estabelece as prioridades entre diversos tipos de opressão. A nova consciência social inclui o feminismo, mas, de acordo com princípios “interseccionais”, as feministas devem ceder a primeira linha aos direitos dos transsexuais, como demonstrou a controvérsia sobre J. K. Rowling (a escritora de Harry Potter protagonizou uma polêmica no ano passado ao insinuar que para ser mulher é preciso menstruar). O meme de “Karen” – que retrata o estereótipo de uma mulher branca, burguesa e racista – indica que o feminismo também está abaixo do antirracismo. Outro exemplo foi a resistência na imprensa alemã de falar das agressões sexuais ocorridas nas comemorações do Ano Novo de 2016 por medo de que a acusassem de estigmatizar os supostos culpados.

É curioso que os ativistas europeus tenham adotado aspectos do movimento woke que são específicos dos Estados Unidos: por exemplo, a denúncia dos atores com o rosto pintado de negro (blackface) e o assassinato de George Floyd se transformaram em fenômenos internacionais. Mas a diferença fundamental entre a Europa e os EUA está na legislação. As leis contra a discriminação são muito mais rígidas nos Estados Unidos do que na Europa. Nos EUA, os departamentos de recursos humanos das empresas oferecem aos funcionários cursos de formação em matéria de inclusão e diversidade desde os anos setenta. O futuro do movimento woke dos dois lados do Atlântico dependerá da capacidade dos ativistas e de seus adversários de aproveitar a indignação moral atual para fazer mudanças legais de peso.

François Bonnet é sociólogo do Centro de Pesquisas Científicas da França. É autor de ‘The Upper Limit’, (University of California Press, 2019)

Fonte: t.ly/gXnt